Sovereign Grace and the Glorious Mystery of Election/pt
From Gospel Translations
... nos elegeu nele antes da fundação do mundo... (Efésios 1.4, RA)
A Primeira Impressão...
James Cantelon relembra sua experiência de conversão quando escreve de modo tocante e muito perspicaz:
“A primeira impressão é a que fica.” Assim afirma o velho adágio, e creio ser a verdade em muitos casos. Minha primeira impressão de Deus acompanha-me até o dia de hoje. Ela se deu num acampamento, numa igreja velha, cheirando a bolor, no Canadá, no centro de Saskatchewan. Contava então cinco anos de idade.
Naquela época, nosso “negócio” eram os tabernáculos. Na maioria dos casos, nossas igrejas eram chamadas “tabernáculos”, mas não somente isso: os prédios onde se realizavam as reuniões de acampamento também levavam esse nome, extraído do Antigo Testamento com o significado de “tenda”. Num dia especialmente quente, meus pais encontravam-se no tabernáculo dos adultos, enquanto eu, acompanhado de meus coleguinhas, acampantes mirins, fiquei no tabernáculo das crianças. A professora passava conosco O Peregrino, de Bunyan. Enquanto ela dava a lição, algo acendeu-se dentro de mim.
Depois da lição, as crianças voaram, ruidosas, para brincar ao sol. Eu permaneci. E a professora Brown parecia saber por quê.
“Posso te ajudar, Jimmy?”, perguntou com tamanha doçura. Com os olhos marejados, sacudi a cabeça, sem dar uma palavra, roendo a unha do meu dedinho, que de repente não parava de tremer.
“Vamos para a sala de trás; aí poderemos orar”, disse. Não posso explicar o que ocorreu [...]. Mas vou dizer uma coisa: aos cinco anos de repente me senti como se fosse o pior pecador que jamais existira. Minha percepção do pecado quase esfacelou meu tenro coração. No entanto, a oração não havia terminado. Começou com remorso, foi transformando-se em alegria. Senti ser retirado de minha frágil alma o peso que acabara de descobrir. A presença de Deus me inundou. Sem que eu procurasse a Deus ou o convidasse ―aliás, sem saber que necessitava dele―, ele veio a minha procura, convidando a mim... uma criança de cinco anos de idade.<ref>1</ref>
A primeira impressão é de fato a que fica. Ao narrar sua experiência de conversão, Cantelon revela algo fantástico sobre Deus: “... ele veio a minha procura...”. Como você compreende sua experiência de conversão? Quem buscou a quem? Deus veio a sua procura? Ou parece-lhe que no fundo você é que estava a procura dele? O que se ressalta mais para você: a iniciativa de Deus e a intervenção dele, ou o arrependimento e a fé que brotaram em você?
Certa noite, no meio da semana, sentado na casa de Deus, lá estava eu, sem prestar muita atenção ao sermão pregado, uma vez que não cria no que estava sendo dito. Fui então assaltado pelo seguinte pensamento: O que o levou a se tornar cristão? Busquei ao Senhor. Mas o que o levou a buscar ao Senhor? Num instante a verdade brilhou em minha mente – jamais o teria buscado caso não tivesse havido previamente algum tipo de influência sobre minha mente que me fizesse buscá-lo. Orei foi o que pensei. Mas então me perguntei: O que me levou a orar?Fui induzido a orar por meio da leitura das Escrituras.O que me levou a ler as Escrituras? Realmente eu li, mas o que me levou a fazê-lo? Então, num instante, percebi que Deus subjazia a tudo aquilo, e era o Autor de minha fé. Assim a doutrina da graça se tornou clara para mim, e dessa doutrina não me afastei até o dia de hoje, desejando que seja sempre esta minha confissão: “Atribuo minha transformação inteiramente a Deus”.
― Charles Spurgeon[1]
Não se trata de perguntas de cunho acadêmico. O cristão que compreende ou interpreta erroneamente a causa subjacente de sua conversão pode se tornar vulnerável ao legalismo, ao orgulho, à dependência de si mesmo, à ingratidão, à condenação e à falta de segurança da salvação. No entanto, quando passamos a compreender corretamente a natureza da nossa conversão ―ou seja, quando conseguimos captar com clareza o papel da graça soberana de Deus na eleição―, nos posicionamos para desfrutar, de forma constante, dos benefícios maravilhosamente transformadores que estão a nossa disposição somente por meio do evangelho.
Das profundezas
- A eleição, naturalmente, é uma doutrina que brota das profundezas do oceano teológico. Assim que nos damos conta dela, todos devemos reconhecer que estamos num ponto muito longe de dar pé. Trata-se de um lugar de mistério, que suscita uma infinidade de perguntas, todas variantes de uma única questão: “Como é possível conciliar soberania divina com responsabilidade humana?”. Na questão do mistério teológico, acho muito útil esta citação de J. Rodman Williams: “Como todas as doutrinas cristãs estão relacionadas com Deus, o qual está em última análise muito além de nossa capacidade de compreensão, inevitavelmente haverá algum elemento de mistério ou transcendência que não pode ser captado pelo entendimento humano. Não obstante, dentro desses limites o labor teológico não pode cessar”.<ref>3</ref> Aliás, Deus havia anunciado a seguinte estipulação não-negociável: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, o nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29). Como eu adoro um segredo, minha soberba não reage muito bem diante de uma declaração como essa. Assim, em parte para me ajudar na questão da humildade, Deus me permitiu morar nas redondezas de Washington DC. Aqui, entre os membros da igreja que tenho o privilégio de servir, existem várias pessoas que precisam manter certo grau de sigilo no tocante aos detalhes de seus empregos, relacionados com o governo americano. Às vezes, em conversa com um ou outro, minha soberba e minha noção de importância se esgueiram, e começo a desejar ardentemente o acesso de alguém que está por dentro. Por que eles não me contam algo bem interessante? Eles não confiam em mim? Não podem abrir uma exceção para o pastor? Nunca satisfazem meus anseios pecaminosos, o que conta muito a favor deles. Em geral nem admitem saber de qualquer informação secreta. Posso me comportar com Deus da mesma maneira. Imploro para que ele explique algum mistério teológico, pressupondo de modo arrogante que meu cérebro não seria carbonizado se entrasse em contanto com tamanha iluminação divina. Mas em sua bondade, sabedoria e misericórdia, ele também mantém seus segredos. Você pode dizer que está bem à vontade com os segredos de Deus?... com aqueles difíceis de compreender?... o paradoxo?... a aparente contradição? Você está em paz no fundo do oceano? Nas Escrituras Deus declarou tanto a soberania divina quanto a responsabilidade humana, sem procurar harmonizá-las por completo. Mas sem dúvida estão harmonizadas em sua infinita sabedoria, e isso deveria nos bastar.
João Calvino oferece um sábio conselho nessa matéria:
O assunto da predestinação, que em si se faz acompanhar de tamanha dificuldade, torna-se embaraçoso e portanto perigoso pela curiosidade humana é perigoso quando recebido com muita perplexidade pela curiosidade humana, que não consegue evitar vagar por caminhos proibidos [...]. Aqueles segredos de sua vontade que ele julgou possíveis de ser manifestos são revelados em sua Palavra ―revelados à medida que, sabia ele, resultariam em nosso interesse e bem-estar [...]. Tenhamos, portanto, por princípio maior que o desejo de conhecimento acerca da predestinação além daquilo que foi apresentado na Palavra de Deus é tão ilusório quanto caminhar onde não há estrada ou buscar a luz nas trevas [...]. A melhor regra de equilíbrio é não somente aprender a seguir na direção apontada por Deus, mas também aprender a seguir quando ele deixa de ensinar (apontar o caminho) para dar cabo ao nosso desejo de ser sábios.<ref>5</ref>
Creio que a maturidade cristã pressupõe um repouso cada vez maior em relação ao mistério divino e uma crescente confiança em Deus, de modo que podemos dizer com Davi: “Senhor, o meu coração não é orgulhoso e os meus olhos não são arrogantes. Não me envolvo com coisas grandiosas nem maravilhosas demais para mim” (Sl 131.1). À medida que crescemos em Cristo, o mistério não diminui. Mas deve haver mais humildade para que estejamos mais tranqüilos diante do mistério divino. Que ele seja grande o suficiente e maravilhoso o bastante para sabermos que a doutrina da eleição é saudável e confiável, representando o ensino claro da Escritura.
Antes de examinarmos com profundidade a maravilhosa doutrina da eleição, precisamos fazer algumas ressalvas, na tentativa de desfazer qualquer mal-entendido. 1) Uma vez que encontramos nas Escrituras tanto a soberania divina quanto a responsabilidade humana, precisamos ensinar as duas doutrinas, sempre ressaltando que as Escrituras dão destaque à eleição: a soberania de Deus na salvação.
2) A doutrina da eleição, ainda que de cabal importância, não define os Ministérios Graça Soberana. É o evangelho que nos define. A eleição desempenha um papel fundamental em relação ao evangelho da graça. Ela protege e preserva o evangelho; não é, porém, um correspondente perfeito do evangelho. O evangelho traduz-se na pessoa e na obra de Jesus Cristo. Somos salvos por confiarmos nele e em sua obra perfeita. “Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras...” Não somos mais apaixonados pela eleição do que somos pelo evangelho. A eleição é doutrina importantíssima, mas somente o evangelho recebe o primeiro lugar de importância.
3) Para ser salvo, ninguém precisa crer na doutrina da eleição, entendê-la e concordar com ela. Um relacionamento salvífico com Deus requer arrependimento do pecado e confiança exclusivamente em Cristo, de que ele salvará exclusivamente pela graça, exclusivamente por meio da fé. Embora a doutrina da eleição seja importante, e as crenças equivocadas a seu respeito possam acarretar conseqüências negativas, certamente não é necessário que alguém abrace a doutrina da eleição para ser salvo.
4) A doutrina da eleição destina-se a cristãos, não a não-cristãos. Não deve ser ensinada nem mencionada em nenhuma situação evangelística. O teólogo Bruce Milne sabiamente declarou que a doutrina da eleição “não é um elemento do evangelho que o cristão apenas apresentaria ao descrente. Ela não deve impedir o convite universal do evangelismo cristão”.[3] Como disse o reformador inglês John Bradford: “A pessoa precisa primeiro deter-se na escola primária da fé e do arrependimento antes de ingressar na universidade da eleição e da predestinação”.
5) Nossa unidade com outros cristãos que não fazem parte de nosso ministério não requer plena concordância quanto à doutrina da eleição. Fazemos nossas estas palavras de Charles Spurgeon:
“Estendemos à mão a qualquer pessoa que ame ao Senhor Jesus Cristo, seja quem for e o que for. A doutrina da eleição, como o próprio ato da eleição em si, não tem por finalidade fazer divisão entre Israel e Israel, mas entre Israel e egípcios. Tampouco entre santos e santos, mas entre santos e filhos do mundo. Uma pessoa pode sem dúvida alguma fazer parte da família eleita, e, apesar de eleita, descrer da doutrina da eleição. Sustento que há muitos que foram chamados para a salvação e não crêem no chamado eficaz, e muitos há que perseveram até o fim sem crer na doutrina da perseverança do crente. Nossa esperança é que o coração de muitos seja bem melhor que a mente. Não associamos essas falácias a nenhuma oposição obstinada à verdade que está em Cristo, mas cremos que se trata simplesmente de erro de julgamento, o qual pedimos a Deus que corrija. Esperamos que, se, no entender deles, também estamos equivocados, eles nos paguem com a mesma cortesia cristã. E, quando reunidos em torno da cruz, esperamos sempre sentir que somos um só em Cristo Jesus.”[4]
Que ninguém então alimente vãs esperanças. Este artigo não responderá a nenhuma pergunta não-respondida até este momento. Nem organizará de forma harmônica conceitos que, para nossa mente finita, possam parecer desarmonizados. E certamente não eliminará da doutrina da eleição aquele rico elemento de mistério. Lembre-se: as mentes mais talentosas e bem-preparadas na história da igreja, não importa quão fundo mergulhem no oceano da teologia, não conseguiram mensurar as profundezas da eleição. Enquanto isso, muito acima deles, minhas pernas finas podem só às vezes ser divisadas, apenas um pouquinho abaixo da superfície, desesperadamente debatendo-se sobre as águas.
O glorioso mistério
Efésios 1.4 é um texto conclusivo para obtermos um entendimento bíblico acerca de nossa experiência de salvação. E embora esteja longe de ser o único texto sobre o assunto da eleição divina, ele é claro, conclusivo em sua autoridade, sucinto e suficiente para nossos objetivos aqui. Nele, a despeito do ainda presente mistério, há clareza que a mente humana pode captar sem oscilações; com convicção. O versículo explica o que de fato ocorreu no momento da conversão: a concretização de uma escolha divina feita desde tempos eternos. O versículo informa que nossa transição da morte para a vida, de pecadores a santos, de objetos da ira de Deus para alvos de sua misericórdia, foi inteira e exclusivamente ato da graça soberana. A primeira impressão que você tem de sua conversão parece indicar algo diferente disso? Em caso afirmativo, permita que essa impressão seja corrigida pela verdade:
nos elegeu
nele
antes da fundação do mundo
Nesse versículo, Paulo nos leva para os bastidores. Ele desvia nossa atenção de sobre nossa experiência pessoal e limitada e nos aponta o Soberano, reinando desde toda a eternidade. Inspirado pelo Espírito, Paulo deseja que haja clareza nessa questão: a salvação resulta da eleição divina. Cada conversão, em cada era, em cada terra, somente foi possível pela graça soberana.
Tomando Efésios 1.4 como guia, concentremo-nos agora no que há de claro e inequívoco nessa doutrina. Exploremos as glórias/ maravilhas da eleição, para que possamos extrair dela todos os benefícios pretendidos por Deus.
... nos elegeu nele...
Para começarmos a destrinchar esse segmento do versículo, precisamos ter em conta o contexto dos versículos de 3 a 14, que no grego formam uma só frase. Paulo abre a frase celebrando as bênçãos espirituais: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo...”. Depois ele desfia uma lista estonteante de bênçãos, começando com o fato de que ele “nos elegeu” (RA). À medida que Paulo explora as maravilhas de nossa salvação imeritória, o efeito dessa primeira bênção se faz ecoar várias outras vezes na passagem ―em palavras como “predestinou”, “adotados”, “redenção” e “perdão”.
Aprendemos nessa passagem da Escritura que a escolha divina precede a resposta humana. À luz da minha pecaminosidade, da depravação que toma conta de todo o meu ser e da iníqua hostilidade para com Deus, preciso concordar com Charles Spurgeon, que foi exatamente o que aconteceu no meu caso.
Creio na doutrina da eleição por estar plenamente seguro de que, se Deus não tivesse me escolhido, eu jamais o escolheria. Estou também certo de que ele me escolheu antes de eu nascer; caso contrário, ele jamais teria me escolhido depois disso. E ele deve ter me elegido por motivos que desconheço, pois jamais encontrei um motivo em mim mesmo por que ele teria olhado para mim com amor especial.<ref>8</ref>
Quando você lê a citação acima, o seu espírito não se agita em confirmação? Você concorda prontamente? Você percebe que ele escolheu a você, e não o contrário? E você percebe que ele o escolheu não por causa de quem você foi, ou é, ou ainda virá a ser, mas simplesmente por misericórdia? Se não, talvez você sustente um equívoco muito comum em relação à natureza da eleição, equívoco esse que foi abordado de forma brilhante nessa historieta de Mark Webb. Ela começa com ele lecionando, em sala de aula.
Depois de fazer um apanhado geral dessas doutrinas da graça soberana, dei oportunidade aos alunos para formularem suas perguntas. Uma senhora em particular estava muito perturbarda. Ela disse: “Essa é a coisa mais terrível que jamais ouvi! Você parece dizer que Deus intencionalmente dispensou homens que seriam salvos, recebendo somente os eleitos”. Respondi então desta forma. “Você entendeu mal o que ocorre. Da sua perspectiva, Deus está de pé nos portais do céu, com os homens amontoando-se para entrar pela porta. Então Deus está dizendo a vários deles: ‘Sim, você pode entrar, mas não você, nem você, nem você...’. Não é isso que ocorre. Antes, Deus está às portas do céu de braços abertos, convidando todos a entrar. Mas todos os homens, sem exceção, correm na direção oposta, rumo ao inferno, o mais resolutamente possível. Então Deus, por meio da eleição, graciosamente alcança e detém este aqui, aquele ali, aquele outro lá e aquele lá adiante, e eficazmente os atrai para si, transformando o coração deles, tornando-os desejosos de vir. Ninguém que, podendo, entraria no céu é impedido pela eleição de lá entrar, mas a eleição impede de ir para o inferno uma multidão de pecadores que caso contrário estaria lá. Não fosse a eleição, o céu seria um lugar vazio, e o inferno estaria com as costuras estourando”. Esse tipo de resposta, alicerçada na Escritura, como creio que esteja, de fato põe tudo em outra perspectiva, não é mesmo? Se você perecer no inferno, culpe-se, pois a culpa é inteiramente sua. Mas, se você conseguir ir para o céu, dê o devido crédito a Deus, pois o trabalho é inteiramente dele! A ele somente pertencem todo louvor e glória, pois a salvação é completamente da graça, do começo ao fim!<ref>10</ref>
Você percebe que ele o deteve em sua precipitação voluntariosa em direção às portas do inferno? As Escrituras referem-se a nós, em nosso estado não-regenerado, como inimigos de Deus, o que indica um ódio e uma hostilidade ativos (Cl 1.21; Rm 5.10; Fp 3.18,19). No entanto, antes de Gênesis 1.1, esse Deus, a quem você odiou, decidiu salvá-lo. E com o tempo, por meio da proclamação do evangelho, ele o chamou pelo nome, detendo-o em sua corrida voraz. Por que ele fez isso? Certamente não porque houvesse nada amorável em você. Esse é o mistério da misericórdia. Uma vez que ele o havia escolhido em seu Filho, ele o deteve por causa de seu Filho. Isso não lhe parece assombroso? Quanto mais consciente você está da iniciativa divina e da depravação própria do ser humano, mais você se surpreenderá com a graça.
Lembremo-nos: você e eu estávamos mortos em nossos pecados (Ef 2.1; Cl 2.13). Deus colocou essa frase na Bíblia intencionalmente. Não estávamos enfraquecidos. Não estávamos feridos. Não estávamos enfermos ou degenerando. Em relação a Deus e à salvação, estávamos mortos. Com a linha do cardiograma totalmente reta, sem nenhuma oscilação. Falecidos. Um monte de cadáveres.
Ao mesmo tempo, estávamos muito vivos em relação ao pecado e ao próprio eu. Amávamos as trevas, e esse amor nos fez inimigos de Deus, hostis em relação a ele. Nós o odiávamos. Por favor, não se lisonjeie pensando o contrário. Deixe que o ensino claro da Escritura ilumine seu entendimento. Você não estava buscando a Deus. Você não descobriu Deus. Você não encontrou Deus. (Ele não estava se escondendo.) Tampouco você estava neutro em relação a Deus. Você era ativa e arrogantemente hostil e oposto ―você odiava a Deus como inimigo. Você pode muito bem ter sido atraído a alguma caricatura de Deus. Você pode ter estado à procura de uma experiência religiosa falsificada envolvendo uma deidade que agrada o homem, forjada a partir de vãs esperanças e uma imaginação pecaminosa. Mas o Deus vivo e verdadeiro ―o soberano, auto-sustentador, preexistente―, a esse você desprezou. Você estava fugindo e fugindo a todo vapor exatamente dele, e do padrão intransigível de sua perfeita vontade.
Como um Deus santo pôde escolher pecadores como nós? A Escritura fornece a resposta a essa pergunta importantíssima. Ele nos escolheu “nele”. Ou seja, no Salvador, que nos primeiros 14 versículos de Efésios é mencionado nada menos que 15 vezes. Ele é o meio pelo qual se cumpre a escolha de Deus para a salvação. A graça soberana está nele. Sou escolhido em Cristo, e exclusivamente por causa de Cristo. Não sou escolhido à parte de Cristo, ou por causa de qualquer coisa em mim. A eleição, a redenção, a adoção e o perdão dos pecados estão nele, e nenhum deles pode existir à parte dele. Ele foi o Codeiro que foi morto antes de todas as coisas. Deus nos escolheu nele...
... antes da fundação do mundo
Aqui temos uma rara referência bíblica a algo que Deus andou fazendo antes da criação. Estava escolhendo pecadores como você e eu. Antes de Gênesis 1.1, fomos destacados, selecionados para a salvação. Para mim, esse é um terreno que sobrecarrega a mente. Fico sem ação diante da graça soberana apresentada nesse fragmento do versículo. O Deus a quem odiei resolveu salvar-me e, no tempo certo, por meio da proclamação do evangelho, chamou-me pelo nome, declarando: “Pare. Você não vai para o inferno. Em lugar disso, você recebe agora em meu Filho o perdão dos pecados e gozo infinito”. E tudo foi acertado antes da fundação do mundo.
Nossa reação apropriada
“Quando [Paulo] introduz [a eleição] em seus ensinos”, escreve J. I. Packer, “o objetivo é somente um: ajudar os cristãos a ver quão grande é a graça que os salvou, e direcioná-los a uma reação adequada na adoração e no viver”. Na verdade, defender um entendimento bíblico acerca da eleição é viver uma vida de “reação adequada”. Aprender que fomos escolhidos antes dos séculos permite que hoje, dentro do tempo presente, vivamos para ele com alegria, paixão e clareza de propósito que estão ancoradas desde os tempos eternos.
Em minha experiência, um entendimento claro e completo da graça de Deus na eleição promove, no mínimo, humildade diante de Deus, segurança da parte de Deus, gratidão a Deus e um predominante senso de missão para a glória de Deus. Pela graça de Deus, essas “reações adequadas” têm em grande medida caracterizado as igrejas Sovereign Grace até este momento. É meu objetivo garantir que assim continuem, e cada vez mais que Deus possa ser sempre mais glorificado.
Humildade diante de Deus
Em 1Coríntios 1.26-29, Paulo faz quatro referências à eleição, e então relaciona a doutrina da eleição com a humildade: “a fim de que ninguém se vanglorie” (v. 29). “Deus intencionalmente projetou a salvação para que nenhum homem se gloriasse dela”, escreve Mark Webb. “Ele não simplesmente a projetou de modo que a jactância fosse desestimulada ou mantida em baixos níveis ―ele a planejou de modo que a jactância fosse absolutamente excluída. A eleição faz exatamente isso.”<ref>12</ref>
A eleição não deixa nenhum espaço para a autocongratulação, uma vez que exclui qualquer contibuição humana. Se o arrependimento que você teve tivesse contribuído para sua salvação eterna, se de algum modo tivesse ajudado a produzir sua ressurreição da morte espiritual para a vida eterna, se tivesse persuadido Deus de algum modo a mudar de idéia a respeito de seu destino eterno, bem, você teria conseguido perpetrar um “truque” bastante interessante. Eu ficaria bem impressionado, e você teria algo de que se jactar diante de Deus e dos homens. Mas, como ressalta Philip Ryken: “O arrependimento não é um método especial para nos salvar; é um meio de admitir que simplesmente não podemos nos salvar. É um meio de nos lançar na misericórdia de Deus e implorar ao Salvador que nos salve”.<ref>13</ref>
Uma das razões por que sou tão grato a Deus por nos permitir ter o nome Ministérios Graça Soberana é o fato de eu já antever que esse nome ajudará a refrear o orgulho e a promover a humildade. “Graça soberana”, naturalmente, compreende muito mais do que a doutrina da eleição. Refere-se a todos os atributos e atos graciosos de Deus, no que se relacionam ao todo da vida, pois todas as coisas estão debaixo do cuidado soberano, gracioso e atencioso de Deus. Nada que o homem faça para Deus jamais se reduz à realização humana. Trata-se da misericórdia, da bondade e da capacitação graciosa de Deus. “... O que você tem que não tenha recebido? E se o recebeu, por que se orgulha, como se assim não fosse?” (1Co 4.7). Uma compreensão correta da graça sempre promoverá a humildade. Assim, vejo esse nome como um dom, um canal para a humildade, em operação hoje, mas também enviada para diante, a algumas gerações futuras que não contemplarei.
Segurança da parte de Deus
Encontro-me com muitas pessoas que parecem incertas ou inconscientes do amor de Deus por elas pessoalmente. Sabem que Deus ama outros cristãos. Sabem que Deus ama seu pastor. Sabem que Deus ama os membros de sua igreja. Mas têm bem menos certeza de que o Criador ama o indivíduo específico que leva o nome delas, as impressões digitais delas e seu DNA singular.
Recentemente, um cristão me reconheceu num avião. Quando aterrissamos, ele se apresentou e disse: “Fiquei muito reconfortado quando vi que você estava no vôo. Sabia que não colidiríamos”. Senti certo desamparo naquele momento. Não havia tempo suficiente para abordar todas as infundadas pressuposições reveladas em seu comentário. Tentei assegurá-lo de que, se era convertido, o amor de Deus para com ele era perfeito, específico e suficiente. Enquanto conversávamos, porém, ficou ainda mais evidente que ele ainda não estava de todo consciente dessa grande verdade.
Crentes assim muitas vezes se vêem amados por Deus pelo fato de pertencerem a um grupo. Deus ama os cristãos. Eu sou cristão. Portanto, como Deus estende seu amor aos cristãos, posso de certo modo me posicionar debaixo da fonte e ser tocado pelo amor generalizado que Deus tem pelos santos.
Isso é enxergar as coisas de trás para frente. Você só é cristão ―está entre os redimidos e adotados, é um herdeiro das riquezas infinitas de Deus― porque Deus o escolheu e ama. Pessoalmente.
Ter um entendimento por menor que seja da eleição é experimentar o amor de Deus pessoalmente. Observe que Paulo, ao examinar as complexidades da doutrina da justificação, começando em Gálatas 2.15, não pôde deixar de tocar muito rapidamente no que isso significava para ele como pessoa: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé no filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim” (v. 20; grifo do autor).
Philip Ryken nos transmite uma ilustração que capta a maravilha de se descobrir alvo da graça eleitora de Deus.
O famoso bibliólogo e professor americano Donald Grey Barnhouse (1895-1960) muitas vezes usava uma ilustração para ajudar as pessoas a entender a eleição. Ele pedia que elas imaginassem uma cruz como aquela em que Jesus morreu, mas tão grande que contivesse uma porta. Sobre a porta liam-se essas palavras de Apocalipse: “Whosoever will may come”. Essas palavras representam a oferta livre e universal do evangelho. Pela graça de Deus, a mensagem de salvação é para todos. Cada homem, mulher e criança que venha à cruz é convidada a crer em Jesus Cristo e a entrar para a vida eterna. Do outro lado da porta, uma feliz surpresa aguarda aquele que crê e entra. Na parte de dentro, qualquer pessoa que olhar para trás depois de entrar poderá ver estas palavras de Efésios escritas acima da porta: “Eleitos em Cristo antes da fundação do mundo”. Entende-se melhor a eleição em retrospecto, pois é somente depois de vir a Cristo que a pessoa sabe se foi eleita ou não. Aqueles que tomam a decisão por Cristo descobrem que Deus tomou a decisão por eles desde tempos eternos.<ref>14</ref> A eleição é uma explicação da conversão posterior à experiência. Feliz surpresa, sem dúvida! Que a expressão que dá nome ao ministério promova uma segurança contínua e profunda do amor infalível e eterno de Deus. O amor divino começou na eternidade passada. É imune aos efeitos desta era presente. Situa-se fora do tempo e antes da criação, e continuará para sempre. Que surpresa feliz essa! Conheça o amor de Deus por você ―pessoalmente. Sinta-o. Experimente-o. Vire-se e leia o que está escrito sobre a porta:Escolhido nele antes da Fundação do Mundo
Gratidão a Deus
Efésios 1.3-14 (v. p. 7) é um arroubo ininterrupto de louvor. Esse é o resultado de entender a graça soberana da eleição. Eis o que Bruce Milne escreve a respeito dessa passagem: “Paulo não se encontra em sua escrivaninha, engajado numa argumentação dialética; antes, está de joelhos, perdido em adoração”. A doutrina da eleição não tem por fim ser um ponto de disputa teológica. É um chamado ao louvor.
Minha oração e exortação é que o nome desse ministério sirva de contínuo lembrete da iniciativa graciosa de Deus para com seu povo, e assim que sirva de chamado à adoração. Que nossa vida e igreja se caracterizem pela clara ausência de murmuração e pela inequívoca presença de um louvor e uma adoração a Deus que sejam apaixonados e gratos.
Jamais aconteça que essas manifestações externas a Deus se tornem superficiais ou meramente rotineiras. Antes da fundação do mundo, ele me escolheu em Cristo. A única reação adequada mesmo diante de um entendimento pouco aprofundado da doutrina da eleição é uma gratidão apaixonada ―louvor e adoração todos os dias da minha vida, até meu último suspiro.
Missão para a glória de Deus
Antes da Criação, Deus estava envolvido numa seleção. Ele estava ocupado no passado eterno e tem no presente um trabalho salvífico a realizar. E ele realiza esse trabalho quando as pessoas proclamam as boas-novas. Como família de igrejas, Deus está chamando os Ministérios Graça Soberana à evangelização em âmbito local e à implantação de igrejas em âmbito global.
Neste mundo, vivemos entre homens, mulheres e crianças que não experimentaram a salvação. Por causa da doutrina da eleição, sabemos que no fim a salvação de pessoas específicas entre elas é algo absolutamente garantido. Não sabemos ―na realidade não temos como saber― de antemão quem são essas pessoas. Mas sabemos que existem, em cada tribo, língua e nação. E sabemos que, para cada um que foi escolhido antes dos séculos, haverá aquele momento em que uma única apresentação do evangelho será usada por Deus para efetuar a salvação.
Em sua misericórdia, Deus nos deu um entendimento bíblico da salvação, como o fez com incontáveis crentes antes de nós. Saber que nossa salvação foi fundamentalmente realizada por Deus e não por nós serve de combustível para nossa confiança e aumenta nossa fé de que veremos outros serem regenerados. Essa “primeira impressão” de nossa salvação com que Deus nos muniu é uma impressão que fica, tendo gloriosas ramificações para a vida e o ministério diários. Assim munidos, saímos para o mundo cheios de fé, sabendo que o evangelho é o poder de Deus, e que o triumfo do evangelho foi garantido antes do começo das eras.
No que tange à implantação de igrejas, tanto nacional quanto internacionalmente, não fomos ambiciosos. Quando acontece de darmos um passo na direção de buscar construir e fortalecer igrejas, descobrimos que não chegamos antes de Deus, ou ao mesmo tempo que ele, mas descobrimos que ele foi adiante de nós. Toda glória por qualquer fruto ou expansão que temos experimentado ou possamos experimentar deve ser dada a ele.
Longe de minar o evangelismo e a implantação de igrejas, um entendimento adequado da doutrina da eleição tanto robustece essas atividades quanto nos assegura de seu sucesso em última análise. Que bom saber que o evangelho do Salvador crucificado e ressurreto não retorna vazio. Nosso Deus tem um plano para a plenitude dos tempos, “de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas” (Ef 1.10). Pela graça, esse plano do Soberano será de fato concretizado. Qualquer que seja o papel excessivamente pequeno que este ministério desempenhe nessa concretização, a graça soberana certamente terá sido nossa história. A graça soberana será o nosso futuro.
[1] Theology for non-theologians, New York: Macmillan, 1988, p. 3.
[2] Charles SPURGEON, Verdades chamadas calvinistas: uma defesa, São Paulo: PES, ????.
[3] J. Rodman WILLIAMS, Renewal theology, Grand Rapids: Zondervan, 1988, p. 16.
[4] Anthony HOEKEMA, Salvos pela graça, São Paulo: Cultura Cristã, ????, p. 3 e 7(???).
[5] J. I. PACKER, Vocábulos de Deus, São José dos Campos: Fiel, ????, p. 158 (????).
[6] Bruce MILNE, Conheça a verdade: um manual de doutrina bíblica, São Paulo: ABU, 1987, p. 183 (????).
[7] Iain MURRAY, Spurgeon vs. hyper-Calvinism, Carlisle: Banner of Truth, 1995, p. 111-2.
[8] Charles SPURGEON, cit. in Table Talk, Sep. 8, 1994.
[9] J. I. PACKER, Teologia concisa, São Paulo: Cultura Cristã, ????, p. 149 (????).
[10]Mark WEBB, What difference does it make?, Reformation and Revival Journal, v. 3, n. 1, Winter 1994, p. 53-4.
[11]J. I. PACKER, Vocábulos de Deus, p. 157 (????).
[12]Mark WEBB, What difference does it make?, p. 52.
[13]Philip RYKEN, The message of salvation, Downers Grove: InterVarsity, 2001, p. 60.
[14]Ibid., p. 68-9.
[15]Bruce MILNE, Conheça a verdade, p. 184 (????).